Trecho da minha monografia defendida em 2009 na EACH - USP . Trabalho a respeito do teatro de grupo em SP a partir dos conceitos de heteronomia e autonomia preconizados por Pierre Bourdieu
Heteronomia é o contrário de autonomia, ou seja, enquanto a autonomia possibilita que um campo qualquer tenha seu funcionamento pautado em uma lógica interna específica, a heteronomia dirige o campo a operar de acordo com uma lógica externa, regrada cada vez mais pelos interesses do campo econômico.
Bourdieu foi quem melhor discutiu a respeito da compreensão do processo de autonomização do campo da produção cultural. Através da determinação da noção de campo social, que corresponde a um sistema de relações objetivas entre diferentes posições, regido por regras e leis próprias, pode-se discutir acerca da dinâmica de funcionamento do campo da produção cultural, dividindo-se em subcampo da grande produção e subcampo da produção restrita. Assim, o campo artístico é composto pela oposição e complementaridade que se estabelece entre os dois subcampos citados. Em tais subcampos é que se instauram os princípios influenciadores do grau de autonomia de um sistema de produção cultural: princípio da autonomia, que seria a arte pela arte, como coloca Bourdieu (1996) e o princípio de heteronomia, que representa uma autonomia relativa, em que as práticas culturais são aplicadas ao público ou às leis de mercado:
O grau de autonomia de um campo de produção cultural revela-se no grau em que o principio de hierarquização externa aí está subordinado ao principio de hierarquização interna: quanto maior é a autonomia, mais a relação de forças simbólicas é favorável aos produtores mais independentes da demanda e mais o corte tende a acentuar-se entre os dois pólos do campo, isto é, entre o subcampo de produção restrita, onde os produtores têm como clientes apenas os outros produtores, que são também seus concorrentes diretos, e o subcampo de grande produção, que se encontra simbolicamente excluído e desacreditado. (BOURDIEU, 1996, p. 246)
Assim, no subcampo de grande produção, prevalecerá o princípio da hierarquização externa, como por exemplo, o sucesso comercial de uma obra. Portanto, existe um maior grau de dependência do subcampo de grande produção em relação aos indicadores externos derivados da dinâmica de outros campos, podendo esta dependência advir do campo da economia ou da política, por exemplo. Isso é o que caracteriza a heteronomia de um campo. Já o subcampo de produção restrita diferencia-se do sistema da indústria cultural, pois sua estrutura e funcionamento são determinados a partir do poder de produzir suas próprias regras de produção e critérios de avaliação de seus produtos aceitos pelo reconhecimento de seus pares. (Bourdieu, 1996) Com isso, a referência do artista em relação a sua obra, assim como sua possível consagração, acontece devido à legitimidade dada por determinantes internos, não considerando assim a lógica que abrange os princípios mercadológicos da grande produção.
A televisão seria um exemplo da grande produção, pois se trata de um campo pouco autônomo. Sua dependência com outros campos a partir de uma lógica comercial, afeta as próprias esferas tanto do conhecimento quanto da consagração dos campos envolvidos, estabelecendo assim a heteronomia, devido ao fato de não serem os próprios produtores os agentes que elegem os trabalhos dignos de apreciação, mas sim a própria televisão.
Para refletir a respeito do campo do teatro e do fenômeno do teatro de grupo, é preciso antes que haja um questionamento sobre a autonomia do teatro e do artista no Brasil. Para isso, Bourdieu e o exemplo da França apresentam-se como discussão e comparação do processo de formação do campo do teatro no Brasil com o processo de formação de campo artístico ocorrido na França.
Na França aconteceu a chamada autonomização (ruptura com a dependência externa) na qual, referindo-se às artes e às ciências em específico, intelectuais e artistas passaram a se desligar do sistema de patronagem e começaram a viver do seu próprio trabalho (ORTIZ, 2001). Por isso o paralelo específico com o campo do teatro no Brasil e uma reflexão acerca dos dois casos.
Para tal discussão, parte-se do que Pierre Bourdieu (1974) chamou de bens simbólicos, em que a arte é caracterizada como um bem simbólico e não como bem econômico (o que de certa forma ela também o é). O poder simbólico representa o poder de impor significações como legítimas. Assim, cabe questionar: quem legitima uma obra e quais os critérios utilizados?
Segundo Pierre Bourdieu (1974), diversas mudanças econômicas e sociais ocorreram progressivamente em relação à demanda e à produção de bens simbólicos como, por exemplo, a emergência e a expansão de um consumidor / público capaz de propiciar condições para a independência econômica dos produtores de bens simbólicos e a constituição cada vez maior destes produtores, que, para se profissionalizarem, passam a recorrer a noções técnicas e a normas que determinam as condições de acesso à profissão.
No século XVIII, com o distanciamento entre arte e função, se desencadeou o aparecimento de um espaço voltado à arte e aos artistas, espaço este de saberes relacionados ao seu próprio fazer, em que os julgamentos de valor são considerados somente quando realizados pelos próprios pares (FREITAS, 2005). Isso aconteceu não só por motivos políticos, mas também pelo processo de autonomização, o qual permitiu ao escritor se constituir como produtor independente.
A busca pela autonomia em relação ao ambiente social esteve presente na constituição do campo artístico e literário, da produção intelectual em geral. Na França do século XIX, arte e literatura determinam-se como prática específica, independente dos campos de poder. Do processo de busca pela autonomização resultou-se uma redefinição da função do artista e conseqüentemente de sua arte: passou a existir uma legitimidade artística, ou seja, o artista teria o direito exclusivo de legislar tanto no campo da forma quanto no campo do estilo de sua obra.
Bourdieu (1974) observa que a autonomia do campo artístico deve ser entendida como um processo histórico no qual uma parte do campo moderno europeu de arte se desenvolveu em detrimento das esferas do poder. Bourdieu (1974) discorre sobre o processo de autonomização:
[...] o processo de autonomização da produção intelectual e artística é correlato a constituição de uma categoria socialmente distinta de artistas ou intelectuais profissionais, cada vez mais inclinados a levar em conta exclusivamente as regras firmadas pela tradição propriamente intelectual ou artística herdada de seus predecessores, e que lhes fornece um ponto de partida ou ponto de ruptura, e cada vez mais propensos a liberar sua produção e seus produtos de toda e qualquer dependência social, seja das censuras morais e programas estéticos de uma Igreja empenhada em proselitismo, seja dos controles acadêmicos e das encomendas de um poder político propenso a tomar a arte como um instrumento de propaganda. (BOURDIEU, 1974, p. 101).
Entretanto, isso acarretou a emergência de um novo mercado consumidor presente em duas esferas: parte da produção passava a ser de circulação restrita, vinculada à literatura e às artes e outra passava para a circulação ampliada, tendo assim um caráter comercial. A respeito disso, Renato Ortiz (2001) coloca que:
[...] se o universo artístico encontrava seu espaço se autonomizando, ele se vê em seguida condenado aos limites que a sociedade lhe impõe, sofrendo imediatamente a concorrência de uma produção de mercado que possui alcance cultural bem mais amplo. (ORTIZ, 2001, p. 25)
A emergência desse novo mercado consumidor mudou a concepção referente à arte, ao artista e ao lugar destes na sociedade. O artista acaba se afastando de seu público por considerar-se gênio e criador independente de sua obra, o que interfere conseqüentemente no surgimento de um público anônimo (burgueses) e métodos de comercialização da arte. Um exemplo disso é a produção coletiva ou a publicidade para os produtos culturais, o que resulta na diferenciação entre arte pura e arte como simples mercadoria. A separação do mecenato da igreja e da aristocracia fez com que parte da produção cultural passasse a se estruturar dentro de um mercado de bens culturais.
A partir do momento em que se tem um mercado de obra de arte, artistas e escritores possuem a chance de fazer e colocar sua obra sob o patamar de simples mercadoria ou como uma singularidade da condição intelectual e artística. Segundo Bourdieu (1974), a colocação da obra de arte como mercadoria e o surgimento de uma categoria particular de produtores de bens simbólicos destinados ao mercado cria condições para a aparição de uma teoria pura da arte, a “arte pura” que corresponde à arte como pura significação, diferenciando-se assim daquela arte como mercadoria.
Bourdieu (1974) descreve que o sistema que envolve a arte não está pautado somente no produtor da obra e receptor, ou seja, no fazer pelo artista e no apreciar por parte do público, mas também naqueles que serão responsáveis pela circulação dos bens. A arte está a serviço de seu público, porém este se divide em diversas categorias, o que acaba atingindo também a produção da obra. Assim, a produção de bens simbólicos encontra-se a mercê de um mercado de bens simbólicos.
E no caso do Brasil, como se deu a formação do campo artístico em específico do teatro? Alguns arriscam afirmar que a origem do modernismo brasileiro poderia ser um processo ou vestígio de autonomização. Porém, assim como coloca Ortiz (2001), o modernismo preconizado na Semana de arte Moderna foi um modernismo sem modernização. Mesmo que o comentário acima de Ortiz seja de certa forma radical, o importante são as razões que o levam a afirmar o que afirmou.
O modernismo na Europa de meados do século XIX foi diferente do modernismo no Brasil. Sobre isso, vale ressaltar o exemplo da França, abordado por Freitas (2005), quando os impressionistas foram marginalizados pelo sistema acadêmico e resolveram formar uma nova esfera pública, menos ligada ao campo do poder político e formada por novos espaços, que como exemplo podem-se citar os cabarés, novos julgadores, com a presença de críticos-poetas e críticos-artistas, nova geração desligada do circuito oficial e estatal, etc. No caso do Brasil, aconteceu o contrário, como assinala Carlos Zílio (apud FREITAS, 2005, p. 203) ao tratar do contexto da arte moderna brasileira:
[...] a tática escolhida foi oposta à atitude dos impressionistas, tendo os artistas brasileiros preferindo renovar as velhas instituições culturais governamentais, tentando conquistá-las por dentro. Isso mostra, sobretudo, o poder do Estado no Brasil como veiculador ideológico, colocando-se de tal maneira presente, a ponto de parecer impossível qualquer opção fora dele. Se, para a arte moderna, essa convivência oficial possibilitou sua afirmação definitiva e uma divulgação mais ampla, para o governo, a recompensa, além do prestígio oriundo da „magnanimidade‟ do mecenato, foi a conquista de uma imagem dinâmica e modernizadora. (ZILIO, 1982, p. 57-58 apud FREITAS, 2005, p. 7).
No Rio de Janeiro se localizavam as principais instituições culturais do país: a Escola Nacional de Belas-Artes, Academia Brasileira de Letras e o Salão Anual de Arte. Mas diferentemente da França, o modernismo no Brasil estabeleceu um espaço seu sem desmontar a esfera pública da academia, ou seja, tanto aqueles que se diziam modernistas quanto os acadêmicos dividiram juntos, de certa forma, a cena cultural local (FREITAS, 2005).
As pinturas e textos modernistas tinham inicialmente como projeto fazerem parte da autonomia da arte moderna no país, posteriormente foi possível notar que não passavam de uma preocupação de âmbito político e ideológico a respeito da cultura brasileira (FREITAS, 2005). O começo do modernismo brasileiro possuía a idéia de quebrar o atraso e romper com paradigmas através de inovações estéticas derivadas do exterior; já na sua segunda fase (pós 1924) voltou-se para o desenvolvimento de uma arte de cunho estritamente nacionalista (que representasse o Brasil e seu povo), o que diversas vezes negava os valores estrangeiros. Logo, Freitas (2005, p. 204) afirma que “a produção artística modernista, desde então, e por um bom tempo, envolve-se nesse projeto de dupla tendência: ser moderna (à moda européia, especialmente francesa) e ao mesmo tempo ser brasileira”.
Durante as décadas seguintes ao modernismo (1940 e 1950) notou-se o início do desenvolvimento de uma sociedade de massa no Brasil devido principalmente às ações de capital privado de empresários, se diferenciando mais uma vez do processo ocorrido na Europa. Um exemplo disso é a fundação da Tv Tupi e a criação do MASP (Museu de Arte de São Paulo) por Assis Chateaubriand, proprietário de uma grande rede de jornais, rádio e televisão. Foi do final da década de 40 e durante a década de 50 que o país mergulhou em um ambiente em que pairava uma noção de certa forma utópica a respeito do desenvolvimento do país. Em 1947 fundou-se o MAM (Museu de Arte Moderna) e, em 1951, a Bienal de São Paulo, ao mesmo tempo em que se formava o cenário da cultura de massa no país com a criação da companhia cinematográfica Vera Cruz (em 1949), a chegada da televisão em São Paulo em 1950 e no Rio em 1951, a fundação da Editora Abril (1950), a criação da Cásper Líbero em 1951 (primeira escola de propaganda do país) etc. (FREITAS, 2005).
Pode-se dizer então, a respeito da autonomia do campo artístico e do campo do teatro no Brasil, concordando com Ortiz (2001) que, entre o princípio do desenvolvimento das esferas culturais durante as décadas de 40 e 50 e entre a consolidação de seu mercado nas décadas de 60 e 70 ocorreu um aumento progressivo da autonomização no que diz respeito ao campo da cultura brasileira. Isso aconteceu principalmente nas décadas de 80 e 90, quando houve um acelerado processo de institucionalização do campo artístico do país. Portanto, houve sim a profissionalização e institucionalização do campo artístico e consequentemente o do teatro, mas ainda é de se questionar a respeito do processo de autonomia de tais campos no país, bem como encontrar vestígios de heternomia, de dependência de determinadas áreas ou do Estado ou do mercado.
Heteronomia é o contrário de autonomia, ou seja, enquanto a autonomia possibilita que um campo qualquer tenha seu funcionamento pautado em uma lógica interna específica, a heteronomia dirige o campo a operar de acordo com uma lógica externa, regrada cada vez mais pelos interesses do campo econômico.
Bourdieu foi quem melhor discutiu a respeito da compreensão do processo de autonomização do campo da produção cultural. Através da determinação da noção de campo social, que corresponde a um sistema de relações objetivas entre diferentes posições, regido por regras e leis próprias, pode-se discutir acerca da dinâmica de funcionamento do campo da produção cultural, dividindo-se em subcampo da grande produção e subcampo da produção restrita. Assim, o campo artístico é composto pela oposição e complementaridade que se estabelece entre os dois subcampos citados. Em tais subcampos é que se instauram os princípios influenciadores do grau de autonomia de um sistema de produção cultural: princípio da autonomia, que seria a arte pela arte, como coloca Bourdieu (1996) e o princípio de heteronomia, que representa uma autonomia relativa, em que as práticas culturais são aplicadas ao público ou às leis de mercado:
O grau de autonomia de um campo de produção cultural revela-se no grau em que o principio de hierarquização externa aí está subordinado ao principio de hierarquização interna: quanto maior é a autonomia, mais a relação de forças simbólicas é favorável aos produtores mais independentes da demanda e mais o corte tende a acentuar-se entre os dois pólos do campo, isto é, entre o subcampo de produção restrita, onde os produtores têm como clientes apenas os outros produtores, que são também seus concorrentes diretos, e o subcampo de grande produção, que se encontra simbolicamente excluído e desacreditado. (BOURDIEU, 1996, p. 246)
Assim, no subcampo de grande produção, prevalecerá o princípio da hierarquização externa, como por exemplo, o sucesso comercial de uma obra. Portanto, existe um maior grau de dependência do subcampo de grande produção em relação aos indicadores externos derivados da dinâmica de outros campos, podendo esta dependência advir do campo da economia ou da política, por exemplo. Isso é o que caracteriza a heteronomia de um campo. Já o subcampo de produção restrita diferencia-se do sistema da indústria cultural, pois sua estrutura e funcionamento são determinados a partir do poder de produzir suas próprias regras de produção e critérios de avaliação de seus produtos aceitos pelo reconhecimento de seus pares. (Bourdieu, 1996) Com isso, a referência do artista em relação a sua obra, assim como sua possível consagração, acontece devido à legitimidade dada por determinantes internos, não considerando assim a lógica que abrange os princípios mercadológicos da grande produção.
A televisão seria um exemplo da grande produção, pois se trata de um campo pouco autônomo. Sua dependência com outros campos a partir de uma lógica comercial, afeta as próprias esferas tanto do conhecimento quanto da consagração dos campos envolvidos, estabelecendo assim a heteronomia, devido ao fato de não serem os próprios produtores os agentes que elegem os trabalhos dignos de apreciação, mas sim a própria televisão.
Para refletir a respeito do campo do teatro e do fenômeno do teatro de grupo, é preciso antes que haja um questionamento sobre a autonomia do teatro e do artista no Brasil. Para isso, Bourdieu e o exemplo da França apresentam-se como discussão e comparação do processo de formação do campo do teatro no Brasil com o processo de formação de campo artístico ocorrido na França.
Na França aconteceu a chamada autonomização (ruptura com a dependência externa) na qual, referindo-se às artes e às ciências em específico, intelectuais e artistas passaram a se desligar do sistema de patronagem e começaram a viver do seu próprio trabalho (ORTIZ, 2001). Por isso o paralelo específico com o campo do teatro no Brasil e uma reflexão acerca dos dois casos.
Para tal discussão, parte-se do que Pierre Bourdieu (1974) chamou de bens simbólicos, em que a arte é caracterizada como um bem simbólico e não como bem econômico (o que de certa forma ela também o é). O poder simbólico representa o poder de impor significações como legítimas. Assim, cabe questionar: quem legitima uma obra e quais os critérios utilizados?
Segundo Pierre Bourdieu (1974), diversas mudanças econômicas e sociais ocorreram progressivamente em relação à demanda e à produção de bens simbólicos como, por exemplo, a emergência e a expansão de um consumidor / público capaz de propiciar condições para a independência econômica dos produtores de bens simbólicos e a constituição cada vez maior destes produtores, que, para se profissionalizarem, passam a recorrer a noções técnicas e a normas que determinam as condições de acesso à profissão.
No século XVIII, com o distanciamento entre arte e função, se desencadeou o aparecimento de um espaço voltado à arte e aos artistas, espaço este de saberes relacionados ao seu próprio fazer, em que os julgamentos de valor são considerados somente quando realizados pelos próprios pares (FREITAS, 2005). Isso aconteceu não só por motivos políticos, mas também pelo processo de autonomização, o qual permitiu ao escritor se constituir como produtor independente.
A busca pela autonomia em relação ao ambiente social esteve presente na constituição do campo artístico e literário, da produção intelectual em geral. Na França do século XIX, arte e literatura determinam-se como prática específica, independente dos campos de poder. Do processo de busca pela autonomização resultou-se uma redefinição da função do artista e conseqüentemente de sua arte: passou a existir uma legitimidade artística, ou seja, o artista teria o direito exclusivo de legislar tanto no campo da forma quanto no campo do estilo de sua obra.
Bourdieu (1974) observa que a autonomia do campo artístico deve ser entendida como um processo histórico no qual uma parte do campo moderno europeu de arte se desenvolveu em detrimento das esferas do poder. Bourdieu (1974) discorre sobre o processo de autonomização:
[...] o processo de autonomização da produção intelectual e artística é correlato a constituição de uma categoria socialmente distinta de artistas ou intelectuais profissionais, cada vez mais inclinados a levar em conta exclusivamente as regras firmadas pela tradição propriamente intelectual ou artística herdada de seus predecessores, e que lhes fornece um ponto de partida ou ponto de ruptura, e cada vez mais propensos a liberar sua produção e seus produtos de toda e qualquer dependência social, seja das censuras morais e programas estéticos de uma Igreja empenhada em proselitismo, seja dos controles acadêmicos e das encomendas de um poder político propenso a tomar a arte como um instrumento de propaganda. (BOURDIEU, 1974, p. 101).
Entretanto, isso acarretou a emergência de um novo mercado consumidor presente em duas esferas: parte da produção passava a ser de circulação restrita, vinculada à literatura e às artes e outra passava para a circulação ampliada, tendo assim um caráter comercial. A respeito disso, Renato Ortiz (2001) coloca que:
[...] se o universo artístico encontrava seu espaço se autonomizando, ele se vê em seguida condenado aos limites que a sociedade lhe impõe, sofrendo imediatamente a concorrência de uma produção de mercado que possui alcance cultural bem mais amplo. (ORTIZ, 2001, p. 25)
A emergência desse novo mercado consumidor mudou a concepção referente à arte, ao artista e ao lugar destes na sociedade. O artista acaba se afastando de seu público por considerar-se gênio e criador independente de sua obra, o que interfere conseqüentemente no surgimento de um público anônimo (burgueses) e métodos de comercialização da arte. Um exemplo disso é a produção coletiva ou a publicidade para os produtos culturais, o que resulta na diferenciação entre arte pura e arte como simples mercadoria. A separação do mecenato da igreja e da aristocracia fez com que parte da produção cultural passasse a se estruturar dentro de um mercado de bens culturais.
A partir do momento em que se tem um mercado de obra de arte, artistas e escritores possuem a chance de fazer e colocar sua obra sob o patamar de simples mercadoria ou como uma singularidade da condição intelectual e artística. Segundo Bourdieu (1974), a colocação da obra de arte como mercadoria e o surgimento de uma categoria particular de produtores de bens simbólicos destinados ao mercado cria condições para a aparição de uma teoria pura da arte, a “arte pura” que corresponde à arte como pura significação, diferenciando-se assim daquela arte como mercadoria.
Bourdieu (1974) descreve que o sistema que envolve a arte não está pautado somente no produtor da obra e receptor, ou seja, no fazer pelo artista e no apreciar por parte do público, mas também naqueles que serão responsáveis pela circulação dos bens. A arte está a serviço de seu público, porém este se divide em diversas categorias, o que acaba atingindo também a produção da obra. Assim, a produção de bens simbólicos encontra-se a mercê de um mercado de bens simbólicos.
E no caso do Brasil, como se deu a formação do campo artístico em específico do teatro? Alguns arriscam afirmar que a origem do modernismo brasileiro poderia ser um processo ou vestígio de autonomização. Porém, assim como coloca Ortiz (2001), o modernismo preconizado na Semana de arte Moderna foi um modernismo sem modernização. Mesmo que o comentário acima de Ortiz seja de certa forma radical, o importante são as razões que o levam a afirmar o que afirmou.
O modernismo na Europa de meados do século XIX foi diferente do modernismo no Brasil. Sobre isso, vale ressaltar o exemplo da França, abordado por Freitas (2005), quando os impressionistas foram marginalizados pelo sistema acadêmico e resolveram formar uma nova esfera pública, menos ligada ao campo do poder político e formada por novos espaços, que como exemplo podem-se citar os cabarés, novos julgadores, com a presença de críticos-poetas e críticos-artistas, nova geração desligada do circuito oficial e estatal, etc. No caso do Brasil, aconteceu o contrário, como assinala Carlos Zílio (apud FREITAS, 2005, p. 203) ao tratar do contexto da arte moderna brasileira:
[...] a tática escolhida foi oposta à atitude dos impressionistas, tendo os artistas brasileiros preferindo renovar as velhas instituições culturais governamentais, tentando conquistá-las por dentro. Isso mostra, sobretudo, o poder do Estado no Brasil como veiculador ideológico, colocando-se de tal maneira presente, a ponto de parecer impossível qualquer opção fora dele. Se, para a arte moderna, essa convivência oficial possibilitou sua afirmação definitiva e uma divulgação mais ampla, para o governo, a recompensa, além do prestígio oriundo da „magnanimidade‟ do mecenato, foi a conquista de uma imagem dinâmica e modernizadora. (ZILIO, 1982, p. 57-58 apud FREITAS, 2005, p. 7).
No Rio de Janeiro se localizavam as principais instituições culturais do país: a Escola Nacional de Belas-Artes, Academia Brasileira de Letras e o Salão Anual de Arte. Mas diferentemente da França, o modernismo no Brasil estabeleceu um espaço seu sem desmontar a esfera pública da academia, ou seja, tanto aqueles que se diziam modernistas quanto os acadêmicos dividiram juntos, de certa forma, a cena cultural local (FREITAS, 2005).
As pinturas e textos modernistas tinham inicialmente como projeto fazerem parte da autonomia da arte moderna no país, posteriormente foi possível notar que não passavam de uma preocupação de âmbito político e ideológico a respeito da cultura brasileira (FREITAS, 2005). O começo do modernismo brasileiro possuía a idéia de quebrar o atraso e romper com paradigmas através de inovações estéticas derivadas do exterior; já na sua segunda fase (pós 1924) voltou-se para o desenvolvimento de uma arte de cunho estritamente nacionalista (que representasse o Brasil e seu povo), o que diversas vezes negava os valores estrangeiros. Logo, Freitas (2005, p. 204) afirma que “a produção artística modernista, desde então, e por um bom tempo, envolve-se nesse projeto de dupla tendência: ser moderna (à moda européia, especialmente francesa) e ao mesmo tempo ser brasileira”.
Durante as décadas seguintes ao modernismo (1940 e 1950) notou-se o início do desenvolvimento de uma sociedade de massa no Brasil devido principalmente às ações de capital privado de empresários, se diferenciando mais uma vez do processo ocorrido na Europa. Um exemplo disso é a fundação da Tv Tupi e a criação do MASP (Museu de Arte de São Paulo) por Assis Chateaubriand, proprietário de uma grande rede de jornais, rádio e televisão. Foi do final da década de 40 e durante a década de 50 que o país mergulhou em um ambiente em que pairava uma noção de certa forma utópica a respeito do desenvolvimento do país. Em 1947 fundou-se o MAM (Museu de Arte Moderna) e, em 1951, a Bienal de São Paulo, ao mesmo tempo em que se formava o cenário da cultura de massa no país com a criação da companhia cinematográfica Vera Cruz (em 1949), a chegada da televisão em São Paulo em 1950 e no Rio em 1951, a fundação da Editora Abril (1950), a criação da Cásper Líbero em 1951 (primeira escola de propaganda do país) etc. (FREITAS, 2005).
Pode-se dizer então, a respeito da autonomia do campo artístico e do campo do teatro no Brasil, concordando com Ortiz (2001) que, entre o princípio do desenvolvimento das esferas culturais durante as décadas de 40 e 50 e entre a consolidação de seu mercado nas décadas de 60 e 70 ocorreu um aumento progressivo da autonomização no que diz respeito ao campo da cultura brasileira. Isso aconteceu principalmente nas décadas de 80 e 90, quando houve um acelerado processo de institucionalização do campo artístico do país. Portanto, houve sim a profissionalização e institucionalização do campo artístico e consequentemente o do teatro, mas ainda é de se questionar a respeito do processo de autonomia de tais campos no país, bem como encontrar vestígios de heternomia, de dependência de determinadas áreas ou do Estado ou do mercado.